Lembro bem de quando era professor no Ensino Médio e via, todos os dias, um aluno calado, sempre na dele, sentado no fundão da sala. Poucos conversavam com ele, e ele quase nunca entregava atividades. Sempre com o capuz da blusa sobre a cabeça, carregava um caderno volumoso que parecia conter um mundo à parte.
Pensava comigo: "Ele não gosta de inglês, deve preferir outras matérias". A sala onde estudava era complicada—muita indisciplina, e às sextas-feiras, quase ninguém aparecia. Eu tentava administrar os desafios da turma e, sinceramente, o garoto do fundão não era um problema.
Certa sexta-feira, uma daquelas em que a sala costumava estar vazia, entrei e, como esperado, não vi ninguém. Já me preparava para voltar à sala dos professores quando a inspetora disse:
— Você tem um aluno na sala.
— Quem?
— O desenhista.
— Desenhista?!
Curioso, entrei novamente e lá estava ele, sentado no fundo, como sempre. Dei um "boa noite", mas ele não respondeu. Sentei em minha carteira e, antes de iniciar o que seria praticamente uma aula particular, fiquei observando.
Ele rabiscava intensamente em seu caderno, que mais parecia uma bíblia de tão grosso. Sua caneta deslizava freneticamente pelo papel. Resolvi me aproximar. No instante em que percebeu minha presença, fechou o caderno rapidamente. Foi aí que notei: ele vestia uma camisa do Dead Kennedys, uma banda icônica do punk rock.
Naquele momento, me conectei com uma lembrança da minha juventude. Fui animador cultural e frequentava shows de bandas de garagem. Lembrei dos punks que vendiam fanzines—revistinhas artesanais com desenhos e textos feitos à mão, xerocados e vendidos a preços simbólicos para financiar novas edições.
Resolvi puxar assunto:
— Cara, lembro da época em que curtia Dead Kennedys!
Ele levantou os olhos, surpreso:
— Teacher, você curte punk rock?!
A deixa perfeita para iniciar uma conversa. Contei sobre o movimento underground no bairro, sobre os fanzines e como os punks usavam a arte para expressar suas ideias sobre o mundo. Ele me ouviu atento e, depois de um instante, disse:
— Teacher, deixa eu te mostrar uma coisa.
Abriu o caderno e revelou uma verdadeira obra de arte. Não eram simples rabiscos—era um portfólio incrível de desenhos em preto e branco. Criaturas urbanas, personagens marginalizados, ambientes da periferia. Havia dezenas deles.
— Você desenha isso todos os dias? — perguntei.
— Eu só olho o mundo e desenho.
Seus desenhos não retratavam apenas destruição e caos, mas também jovens como ele, curtindo a vida, vivendo suas próprias histórias. Me perguntei se, de alguma forma, ele se via em suas criações. Não deu tempo de perguntar. Os 55 minutos da aula passaram voando.
Meses depois, já no final do ano letivo, o reencontrei na rua, perto da escola. Dessa vez, ele me chamou com um sorriso no rosto:
— Teacher, meus desenhos foram aceitos por uma produtora! Acho que vou fazer o que realmente gosto na vida!
Nunca mais o vi. Mas até hoje me lembro dele. E da grande lição que aprendi naquela sexta-feira.
Por Carlos Lima : Educomunicador e professor
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É bem isso, Carlos! Amorosidade de Paulo Freire. O bom professor não é só aquele que transmite conhecimento mas aquele que busca por meio da comunicação sujeitos que também trazem consigo uma bagagem que só podemos compreender por meio de uma relação dialética do contexto e vivência dele. Você nunca poderia ter ajudado esse garoto se não tivesse se aproximado. Parabéns pela iniciativa!
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