Meu nome é Tatiane Evangelista Soares. Tenho 34 anos, e se
hoje sou quem sou, muito se deve a uma experiência que vivi quando tinha apenas
12 anos, na EMEF Altino Arantes, lá na Vila Industrial, Zona Leste de São
Paulo. Era uma típica menina de vila, corinthiana, cria da Padre Almeida Silva brincava muito na rua e
estudava na escola do bairro. Fui uma criança serelepe, espilicute, atenta,
comunicativa e muito curiosa.
Em 2002, quando o programa EDUCOM.Radio chegou à minha
escola, eu fiquei empolgada. Era algo novo e fascinante, que oferecia uma
oportunidade única para alunos em situação de vulnerabilidade social e
marginalização — aqueles que estavam "dando trabalho". Eu sempre fui
uma boa aluna, mas, como falava demais, talvez não fosse a aluna modelo que os
professores esperavam. Mesmo assim, não queria ficar de fora. Sabia que aquela
podia ser uma chance única na vida
Então, eu e minha melhor amiga Carolina Helena Braga de
Santanna Marucci tomamos coragem e fomos
até a coordenação da escola. Apesar de as vagas serem limitadas e voltadas para
quem estava em maior risco, também queriamos participar. Disse que poderia
ajudar, servir como uma mediadora entre os alunos e as tensões naturais que
surgiriam com algo tão novo. Oportunidade de onde venho não se deixa passar,
são raras mas preciosas.
Quando a rádio foi montada na escola, aos poucos nos
reunimos para aprender a trabalhar com aquele universo tão diferente. Os fins
de semana se tornaram dias de aprendizado intenso. Professores, pessoas da
comunidade, pais e até funcionários da escola se uniram ao projeto. A tia
inspetora de pátio e duas merendeiras,
por exemplo, ficavam conosco, participando e assistindo enquanto descobrimos o
mundo da comunicação.
Foi nesse período que eu compreendi o verdadeiro significado
de educomunicação — uma prática que integra educação e comunicação, permitindo
que as pessoas sejam não apenas receptores de informação, mas também produtores
e disseminadores de conteúdo. A educomunicação nos empoderou, nos deu voz e nos
mostrou que podíamos ser protagonistas das nossas próprias histórias.
Fomos treinados, recebemos equipamentos, e construímos nosso
Grêmio Estudantil - JP JOVEM E PROGRESSO
para organizar a sala da rádio. Foi ali que comecei a entender como funcionam
conselhos, associações e organizações. Foi ali que percebi o poder de estar
organizado, de ter responsabilidades e de trabalhar em equipe para mudar nossa
realidade.
Era uma ótima locutora, apresentadora e mestre de cerimonia.
Tinha uma voz grave e firme, mas confesso que tinha dificuldade em pronunciar
algumas palavras, conjugar verbos e falar o plural quando preciso. Essa
dificuldade era algo que carregava desde casa, com meus pais. Mas ali, na
rádio, lendo em voz alta todos os dias, com a ajuda e o incentivo dos meus
colegas, professores eu comecei a melhorar e não me intimidar o importante era
me expressar e não nos calar. Todos nós crescíamos juntos, compartilhando força
e carinho.
Nós planejávamos nosso conteúdo, discutíamos pautas, e
cuidávamos dos programas. Escolhíamos músicas, visitávamos a cultura e, naquela
salinha um espaço apertado entre a diretoria e a sala de informática, nós,
jovens que muitas vezes éramos vistos como casos perdidos, estávamos
transformando nossas vidas.
Lembro-me com muito carinho e gratidão dessa época. Depois
que saí de São Paulo, continuei a buscar conhecimento. Migrei pro Ceará Fiz
Serviço Social e entrei em Filosofia na Universidade Federal do Ceará (UFC), e,
após me formar, ingressei na Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva
pela Escola de Saúde Pública do Ceará. Ser a primeira pessoa da minha família a
se formar foi uma conquista, mas também uma reflexão dolorosa sobre as
oportunidades que muitos dos meus familiares não tiveram.
Aquela experiência na rádio foi mais do que aprender a
comunicar; foi aprender a ser cidadã, a sentir que eu tinha direito a um futuro
melhor. Olho para trás e vejo que, mesmo que minha trajetória tenha sido
difícil, aquele projeto foi uma joia rara que me deu força para seguir em
frente.
Perdi amigos para a violência, morte matada mesmo, vi outros
sendo presos, e muitos de nós passamos por dificuldades, trabalhando em
empregos que exigiam muito e ofereciam pouco enquanto terminávamos o ensino
médio. Era cansativo sobreviver naquela época, e ainda é. Mas, quando vejo
manifestação viva de EDUCOMUNICAÇÃO, sorrio. Respiro. Tipo da um alívio.
Flerto com o perigo de pirar, vire e mexe, sinto tudo
muito. Mas, RESPIRO.
Por entender que o acesso à educação, saúde, cultura e afeto
pode transformar fragilidades em potências. Inovação é ação, e aquele projeto,
mesmo na sua fase embrionária, revolucionou minha história.
Escrevendo isso, me sinto emocionada. É como se libertasse a
criança que fui, a menina que além de aluna, se tornou comunicadora. Brincar,
criar, inventar destinos mais criativos, dignos e justos é o que me move.
Acredito que ainda temos muito o que construir. E, sim, ainda há tempo.
RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UMA ALUNA DE ESCOLA PÚBLICA PUBLICA:
EIS-ME AQUI, ENTRE VOZES: Educomunicação nas ondas do Rádio, 2001 - 2004.
(Registro resgate de memória iniciado em 26 de Dezembro de 2023)
Texto por: Tatiane Evangelista Soares