Minha avó morava em um cortiço coletivo na Vila Jacuí, onde cinco casas dividiam o mesmo quintal. Atrás da parede dos quartos passava o Rio Jacu, um curso d’água sinuoso que vinha de São Mateus e seguia até desaguar no Tietê. A Vila Jacuí naquela época ainda tinha um ar bucólico, com sítios, áreas de mata, ruas de terra e casas simples. A viela onde ficava a casa da minha avó tinha acesso à Avenida Laranja da China e contava com cerca de dez residências, muitas delas também cortiços como o nosso.
As construções eram modestas, sem laje, erguidas com tijolos vindos das olarias da Vila União, região conhecida como Pantanal. O nome vinha das lagoas e do terreno alagadiço próximo ao Tietê. O Rio Jacu, que cortava nosso bairro, era mais um córrego do que um rio caudaloso, e eu costumava atravessá-lo a pé nas brincadeiras de infância.
Naquela noite, o céu se fechou de repente e a tempestade desabou. Minha avó havia acabado de chegar do trabalho no apartamento de um empresário norueguês no Centro da cidade. Sempre trazia alguma coisa gostosa que o patrão deixava levar. Eu adorava visitar minha avó. Gostava de soltar pipa, brincar na rua e dar "tibum" na represa nos dias de calor.
Quando a chuva começou a engrossar, minha avó e meu tio espalharam bacias e panelas pelos cômodos para aparar os pingos que caíam do telhado. Casas antigas sempre tinham goteiras, e o madeiramento, desgastado pelo tempo, fazia com que as telhas se deslocassem. Logo, todos adormeceram ao som da chuva.
O sono pesado de todos impediu que percebêssemos a tragédia iminente. Enquanto dormíamos, o rio avançava com força contra a parede do quarto. De repente, um estrondo. A parede desmoronou, e a água invadiu tudo. Só percebi o que estava acontecendo quando senti o colchão encharcado. Acordei assustado, confuso, vendo um rio nervoso diante dos meus olhos. Por um instante, achei que era um pesadelo. Mas era real.
Minha avó e meu tio gritavam desesperados:
— Carlinhos! Sai rápido!
Corremos para a frente da casa e ficamos ilhados, até que vizinhos conseguiram nos resgatar. Foi por pouco. Minutos depois, vimos toda a casa ser levada pela correnteza. Perdemos tudo, mas saímos vivos. Com o amanhecer e o recuo das águas, o cenário era desolador. Toda a pequena vila de moradores havia sido destruída pela enchente. Minha avó, embora triste pela perda de tudo, agradeceu a Deus por ninguém da família ter morrido.
Anos depois, já morando em outra parte da Vila Jacuí, mais alta e aparentemente mais segura, uma grande obra foi realizada para ligar o ABC a São Paulo: a Estrada Jacu Pêssego. A construção da via transformou a paisagem, retificando o curso do Rio Jacu e melhorando a mobilidade urbana. Quando foi finalmente interligada à Rodovia dos Imigrantes, tornou-se um importante eixo de escoamento da produção para Guarulhos e o Porto de Santos. A canalização do rio ajudou a revitalizar os bairros cortados pela estrada.
Mas o progresso trouxe suas contradições. Com o crescimento urbano, as ruas foram asfaltadas, os quintais cimentados, e a "esponja natural" da região — antes formada por plantações e lagoas — perdeu sua função. A sinuosidade do rio, que antes ajudava a desacelerar a água, deu lugar a um canal reto, aumentando a força das correntezas e agravando os riscos de enchentes.
Minha avó participou de um movimento de luta por moradia e conseguiu um terreno exatamente do outro lado do rio, perto do local onde quase sofremos a tragédia anos antes. Quase vinte anos depois, uma nova tempestade atingiu a região. O Rio Jacu, com sua capacidade reduzida, não suportou o volume de água, e a Avenida Jacu Pêssego ficou completamente alagada. Como morávamos no final da avenida, fomos novamente atingidos. Mais uma vez, minha avó perdeu tudo.
As enchentes continuaram. No ano passado, outro grande alagamento atingiu moradores que vivem a 500 metros da avenida. A água subiu um metro e meio dentro das casas, deixando dezenas de famílias desabrigadas.
O que essa história nos ensina? Que o poder público ainda falha em pensar em todas as nuances do impacto de grandes projetos. O histórico da canalização do Rio Tamanduateí é um exemplo disso: a obra criou uma alternativa de mobilidade, mas, até hoje, a população sofre com enchentes. O progresso não pode ser apenas concreto e asfalto. Ele precisa considerar a vida das pessoas e o equilíbrio ambiental. Afinal, de que vale uma cidade moderna se ela continua alagada toda vez que chove?
Rachel Trajber realiza aula para professores da Rede Municipal de Ensino de SP
Esta crônica foi inspirada na atividade promovida pelos pesquisadores da CEMADEN Rachel Trajber e Felipe Santos, no curso Educomunicação Socioambiental: Precisamos falar de emergência climática na escola. Durante a atividade, criamos um roteiro para entender o problema que vivi e realizamos uma entrevista onde pude contar minha história. O grupo produziu um jornal mural para ilustrar a situação que enfrentei.
Essa é uma estratégia chamada História Oral, que consiste no relato de uma pessoa que sofreu um desastre ambiental. Esse relato pode se transformar em minidocumentário, podcast, jornal mural, texto para blog ou até mesmo uma história em quadrinhos. A proposta é utilizar a educomunicação para socializar as histórias das pessoas da comunidade e suas experiências de vida. Essas narrativas criam conexões emotivas e fazem as pessoas refletirem sobre os problemas ambientais e sociais que enfrentamos.
Por Carlos Lima - Professor e Educomunicador
Imagem: Reprodução Wikipedia
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